Alexandria - Se Tu Queres Sarar a Solidão...

Do Elogio da Morte ao Requiem do Abandono, Alexandria é a Biblioteca das Ruínas de cada Eu fragmentado, da insustentável esquizofrenia do Mundo...

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Imagine Alexander, before conquering half the world: A man full of dreams and handful of sand. Well, that's me...

Tuesday, July 31, 2007

Semântica da Utilidade - Sense and Meaning

Tenho noção da utilidade de um vaso antes de lhe pôr dentro uma planta. O cabide traz-me à memória o casaco que lhe visto sem que eu precise de estar a ver o casaco. A frigideira não precisa do ovo para que eu conheça a sua função. O bengaleiro já sabe, quando eu entro, que lhe vou deixar o guarda-chuva; o sofá já espera o meu cansaço, a minha indolência incurável ao fim da estafa do dia. Cada objecto conserva gravado o propósito para o qual se viu feito. Mas que uso há em mim e no meu cansaço e na minha presença fastidiante impondo-se a todas as coisas? Que utilidade eu tenho que me dê sentido de uma forma inata como o que recebe cada objecto que eu uso? Para que sirvo? Porquê?
Eis então a razão que há na arte. Por mim, o ideal Dada desconstruiu o mundo para entender, para cada sujeito, qual o seu objecto, qual a peça que justifica o Homem que surgiu. Desmontado o carro, posso entender, talvez, a razão do motor. Senão, reiventá-lo na sua funcionalidade: desmantelo a arbitrariedade de outros para instituir a minha função que será então original. Da antiga decadência reconstruo a minha originalidade, o meu eu funcional, justificável por se reger por mim. Dos desperdícios de outros, faço a minha evolução única. De um urinol de leis que outros ditaram, reescrevo o mundo e faço a minha fonte.
Inversão de valores? Talvez. Mas, acima de tudo, conversão da minha unicidade no lugar central e insubstituível que deve ocupar na sociedade, na vida, no Universo.

(Lisboa, 05/01/03)

Monday, July 30, 2007

Discurso Lógico de Um Céptico Existêncialsimo

O que comprova a minha existência são as minhas sensações e a imagem do espelho. Os outros não me servem de resposta porque, na verdade de mim, não podem jamais caber as verdades alheias. Contudo:

a) As minhas sensações não estão de acordo com a imagem do espelho. Em qual das duas verdades eu existo?
b) As minhas sensações são desmentidas pela imagem do espelho. Como existo?
c) As minhas sensações não têm reflexo no espelho. Será que existo?
d) As minhas sensações são o seu espelho. Não existo.

(Lisboa, 04/01/03)

Sunday, July 29, 2007

Carnaval

Alice, como Gulliver, é um pretexto para ilustrar as sociedades modernas. Ela revela em simultâneo a brutalidade física e psicológica das personagens que ensombram o seu mundo que nada tem de fantástico, onde a crueldade, a violência e o egoísmo atroz do nosso quotidiano se atenuam, simplificam, humorizam e tornam suportáveis através do sonho aparentemente naïf de uma criança. O que há porém de naïf nas avaliações que os mais novos fazem do mundo? A hipocrisia das pessoas crescidas teima, afinal, em desvalorizar aquilo que a maturidade fez esquecer e que elas, tão adultas, não querem, não podem, não conseguem ver. Pois como pode, diante da verdade, ter efeito uma máscara?

(Lisboa, 02/01/03)

Saturday, July 28, 2007

Kindergarden, Bittergarden…

O fim da infância é o fim da vida e o princípio da sobrevivência. Se sobrevives, deixa-te morrer. Porque essa coisa que superas com valor e esforço não é, na verdade, coisa alguma...

(Lisboa, 01/01/03)

Friday, July 27, 2007

A Origem da Loucura

A minha alienação é estar aqui.



(Lisboa, 25/12/02)

Thursday, July 26, 2007

Finimaginário

A realidade supera sempre a ficção: é a única coisa que a imaginação não consegue prever.

(Lisboa, 23/12/02)

Wednesday, July 25, 2007

Through The Looking Glass...

Olhar para mim não é exclusivamente uma questão de vaidade mas um modo bem sério de auto-conhecimento.
Um dia, de tanto olhar o espelho, hei-de ver alem dele, como quem vê um corpo, o mais fundo salão de mim mesmo. Lá estarão as porcelanas, e os pratos, e os talheres, e os móveis, e os livros, e todos os objectos por servir e enfeitar da minha personalidade múltipla e difícil. Nele eu encontrarei o meu segredo: O da verdade da mentira que há em tudo, sendo sincero só dentro de mim.

(Lisboa, 23/12/02)

Tuesday, July 24, 2007

Preventivo Paradoxo

O legado principal do dadaísmo foi deixar clara, em nós, a consciência de que o Mundo vive só da subversão. Já se engana apenas com a verdade. Eu hoje peço aos Homens que me mintam por não querer, depois, ser enganado.

(Lisboa, 23/12/02)

Monday, July 23, 2007

Hipocrisia em Dó Maior

O Fado é um ritual de redenção. No momento em que uma prostituta começa a cantá-lo é promovida a pessoa, depois a mulher, depois a santa. Terminada a sessão, regressa ao estatuto inicial de mula. A sociedade tem esta forma sublime de catalogar os seus membros, e de os promover ou despromover nas suas hierarquias de acordo com a conveniência das várias situações. No fundo, é como a celebração da missa. Os homens e as mulheres entram sujos da merda quotidiana, desperdiçam algum latim, lançam amens, comem a hosteazinha, rezam pela Humanidade que desprezam e saiem de alma lavada para voltar às engrenagens ferrugentas das suas vidas más... Sem dúvida, as religiões são o ópio do povo…

(Lisboa, 22/12/02)

Sunday, July 22, 2007

Heliocentrismo - Que Bom É Ser O Sol! - Versão Pragmática (Afectada Pelo Alcool)


O puro génio quer-se livre e, como tal, é amoral e irresponsável.

(Lisboa, 21/12/02)

Saturday, July 21, 2007

Freaks After Life After Tod Browning…

A aberração é o resultado inglório de três realidades distintas: Uma subjectividade; uma maioria; uma consciência.

(Lisboa, 21/12/02)

Friday, July 20, 2007

Vaidades, Nada Mais Que Vaidades...


A normalidade é uma utopia vã que se retoca de manhã, em frente ao espelho.

(Lisboa, 19/12/02)

Hermenêuticas...


Nas fábulas de Esopo ou La Fontaine ser-se raposa é um adereço, como o é em Carrol ser-se um animal, uma duquesa ou um ovo…


(Lisboa (16/12/02)

Wednesday, July 18, 2007

Reinvenção do Desgosto de Miguel Casanova, Antigo e Irreverente Conquistador de Desgraças...

O amor apontou-me uma faca à garganta. Foi o ódio que veio beijar-me as faces… Vivo em descansos de mágoas, (tantas, tantas!) nada me traz um conforto.
«O amor…», dizem-me uns, com tons de paternalismo… E eu rio-me nas suas caras regradas das suas ilusões de adolescente… O amor?!
O amor não é mais (do) que uma extensão do desejo, uma pincelada inútil de um verniz que estala sobre a madeira do móvel com que enfeitamos a vida. O ódio é a cinza desse móvel ardido, é o seu rosto de poeira e de sal no fim dos gritos, das lágrimas, dos gestos dissolutores. Não há bom nem mau. Há duas faces apenas da mesma moeda ferrugenta que guardamos no bolso das calças por simples superstição. Não, não há bom nem mau. O que fica na sala vazia onde estiveram os móveis é tão só a placidez nostálgica de um bem que passou, um ressentimento que se esfuma lentamente do que foi perdido, uma vontade incerta de arranhar as paredes, um abandono que passa e se habitua a si mesmo, as notas soltas de uma canção triste que se ouvia na rádio. O tempo cura tudo porque a memória, felizmente, é finita como o nosso corpo. O tempo cura tudo porque mais cedo ou mais tarde nos leva à senilidade, ou à loucura, ou à decomposição final irreversível. O tempo cura tudo porque a natureza é perfeita nas suas imperfeições, por permitir a todas as espécies a graça imensa de um fim.
Sim… o amor… uma faca à garganta… um beijo calmo que me queima o rosto, que me incendeia o peito de rancor, um beijo de fogo que me recorda o abandono interminável que sofri: ontem, hoje, talvez amanhã… ontem, hoje, talvez…
Veste-te Miguel. Sai desse torpôr. Que fazes tu nu diante desse espelho?

(Lisboa, 11/05/02)

Tuesday, July 17, 2007

Meu Querido e Doce Egoísmo!

Pianissimo… um adagio… Ah, este Albinoni enche-me a alma inteira! Como pode uma peça tão triste confortar um homem solitário? Mas não é claro, Miguel? Albinoni mostrou-te que há mais gente que sofre neste mundo! E porque és tão vil isso fez-te sorrir…
Sim, pianissimo… um adagio… toca, miserável! Outros como eu! Outros piores! Como é bom saber disso, como isso me dá paz!
Raça mesquinha que é o Homem! É de saber que há lágrimas nos outros que eu ganho vontade de dormir…

(Lisboa, 15/07/02)

Thursday, July 12, 2007

Epitáfio ou o Aforismo Da Rebelião Eterna:


Nenhum caixão contém a minha sorte. Escrevo agora, escreverei na morte.

(Lisboa, 17/09/01)

Sai Folia, e Deixa-me Cá Dentro!

Não me digas que há pássaros lá fora. Que conforto há no mundo além do calor do meu quarto? Que pode haver no exterior que me console? De que me serve o bem-estar além da minha janela? É de um outro, não meu. De nada serve uma busca por nada haver para achar. Pássaros lá fora? Eu abomino os pássaros! Eles são belos só na literatura. E a vida não é nenhum poema…

(Lisboa, 22/04/01)

A Confissão do Desejo

Sou arrogante, confesso-o. Chego a ser um bruto. Sou orgulhoso e soberbo; sem justificações convincentes e regradas, declaro-me genial. Sou teimoso, sou felino, sou irónico, sou sarcástico, sou cáustico, sou cruel e sou mau. A minha unicidade é um assombro! Sou interminavelmente inteligente e apático, intratavelmente humano e louco, incompreensivelmente além e deslocado de tudo! Ah, Humanidade! Alguém que me açoite! Sim, batam-me, batam-me! Rufem-me como um bombo! As minhas orelhas são timbalões abanando, as minhas costas são de lona sêca, os meus membros são pratos e a minha cabeça é uma tarola agastada. Batam-me com força! Musiquem-me! Orquestrem em mim o vosso ódio por moer do corpo e o vosso tédio por queimar! Dêm largas em mim à vossa raiva por deitar ao lixo e à vossa frustração de falhar em tudo! Eu quero expiar a Humanidade inteira por ser maior do que ela! Eu quero que me aniquilem! Eu quero que me amem! EU NÃO SEI O QUE QUERO! Eu quero que pudesse querer querer o que quisesse e que tudo o que quisesse se fizesse de facto! Eu quero que me anulem, me neguem e me contrariem! E que depois me exaltem e glorifiquem e me achem o maior dos maiores, o deus dos deuses supremos e absolutos. Eu quero que me matem por inteiro deste espaço mesquinho e prático da vida e que depois me renasçam como a Fénix, e que depois me consolem com um sem fim de beijos, e que depois me abracem com um não poder de saudade, e que depois me reclamem e me adorem, e que depois me idolatrem, e que concordem comigo…

(Lisboa, 28/12/99)

Tuesday, July 10, 2007

Is It You, Dear Me...?

«Cortam-nos as gargantas com as lâminas do desprezo.» - Frase retirada de um romance pobre. «Sentir secar-me a vida como um lírio que se esqueceu no deserto…» - Verso branco de um poeta menor.
Inúteis analogias! Sofremos. Ponto final. Não comparemos. Que aborrecimento impossível nesses comos, nas metáforas com as suas substituições, nas metonímias com as suas insuportáveis associações de ideias!
Se há tédio, se há neura, se há dor, se há morte a aproximar-se, se há cansaço, se há irritação, se há solidão, se há sono, se se pensa sem haver que pensar, que seja apenas tédio e neura e dor e morte a aproximar-se e vida em fase de espera (por favor uma cadeira para que eu me possa sentar), que seja apenas cansaço e irritação e solidão e sono (que se durma), e um pensamento vago e prescindível (que não se pense então), que o que é seja simplesmente o que é como sempre foi sem se pensar nisso ou no que poderá ainda vir a ser, para que não se volte a falar nisso, e a vida não se repita, que acima de tudo não se repita, que nada se repita, acima de tudo não repetir, essencialmente não repetir, porque é importante não repetir, e eu repito-me, decididamente repito-me, sim, repito-me, repito-me, repito-me, chego mesmo a existir a dobrar… Sim, a verdade é esta: tenho um duplo nas veias a brincar com os meus dias… Porém, se numa frase, a repetição pode ser eliminada, como eliminar a repetição na vida? (Lisboa, 23/12/99)

Monday, July 09, 2007

Além de Hegel: Fisiologia do Espírito...

Não é fácil o amor. Melhor seria arrancar um braço (Janita Salomé). Não, Janita, melhor cortar a cabeça: porque o amor vem pôr necessidades no corpo que, até então, não conhecia mais do que o desejo. Como satisfazer o além-corporal? Quem ouviu falar da fisiologia do espírito? O amor é difícil, precisamente, porque não é no corpo que ele encontra a satisfação de si mesmo, mas no intocável do objecto amado...

(Lisboa, 16/12/99)

Descartável…:

a) Decisão forte: vou de vez dedicar-me à bebedeira. Eu que (parecia!) tinha má memória, tenho tanta coisa p’ra‘squecer! Só hoje são 24 horas! E as outras horas todas dos dias que as precederam? E os outros dias antes desses? E os meses? E os anos? E os anos por detrás dos anos que se fazem passados e longínquos mas que estão perto como velas sobre o rosto e me atormentam e me queimam e me chagam? E a mágoa neles todos, e a mágoa? E a hora, por detrás de todas essas horas, por detrás de todos esses dias, por detrás de todos esses meses, por detrás de todos esses anos, em que se ouviu, na solidão da noite, o choro de uma criança? Quem queimará essa hora?

b) Vela que m’i’ardes no rosto,
Para quê essa demora?
Só a morte sabe a pouco,
Foi viver e deitar fora…

(Lisboa, 18/12/99)

Farmacologias...

Vou sobrevivendo aos dias com sobredoses de vários comprimidos: este para a vista, aquele para a derme, o outro para todos os sentidos… para a alergia, a urticária, a arritmia… para a azia esquálida da vida… Nenhum serve, nenhum trata, nenhum cura… e esta mágoa imensa que perdura… Procuro um, de eficácia comprovada, que me cure, de vez, do ser-não ser. Ò Senhor Baptista da Farmácia: O que tem aí para eu sorver? Eu queria apenas aquele comprimido, que impede o coração de me bater, eu queria apenas aquele comprimido que impede o coração… pode vender?

(Lisboa, 22/12/99)

Anátema de Um Louco Por Amor...

Meu amor,

Tão longa esta tristeza e tão intensa a dor! Onde a levaza além dos longes Céus?
Escrevo por tudo e por nada: pela água estagnada, pelas ondas nos ilhéus! Porque a saudade é imensa e o desejo bastante; porque há fome, meu Deus!, e ela é tão grande! Tenho fome à noite dos teus beijos! Fome, talvez, desse teu corpo nu! Vem matar-me a fome por inteiro! Quero uma coisa no Mundo: Tu, tu, tu! Sou um esqueleto ambulante, bruto e feio. Um monstro devorador! Hei-de rasgar-te a pele, trincar-te os seios! E tudo por amor… Despedaçar-te a vida num só gesto... provar cada pedaço... Ser prepotente, raivoso, mau, funesto. Irromper aos urros pelo espaço! Do que sobrar de ti hei-de fazer um colar, sanguíneo, orgânico, comprido... E hei-de usá-lo ao pescoço e hei-de andar como um Tirano devasso e presumido!: E passe eu onde passar, (Trovas do Vento que Passa!), ter-te-ei sempre comigo, em tudo aquilo que faça…
Tudo tem fim, já murchou... Essa planta que era de ontem já de manhã fenecia... Vou beber-te todo o sangue - o que era meu ja secou - vou drenar-te, ò gentes contem!, cada gota, à agonia!
Porque eu desprezo esse Mundo, que me despreza afinal! Porque eu odeio de tudo, desde o ter Bem ao ter Mal! Porque eu não quero haver mais estas vãs vontades vãs! Porque eu não quero sinais, nem despertares, nem manhãs! Porque eu não quero mais as minhas ilusões! Nem memórias, ais, recordações! Porque eu não quero mais as ânsias do desejo! Porque eu não quero mais esse teu beijo! Porque eu não quero mais chorar porque não estás! Porque eu só quero Paz e Paz e Paz! Porque eu não quero mais negar querer! Porque eu não quero mais acontecer... Ó vida, aonde vais? Desiste, pára... É esta f'rida de ser que não me sára! É esta coisa rara de me ter! Ao longe (e onde? e onde?) um rio que corre... Ao longe um barco a arder... (É uma dança...) Sim arde, morre! Morre! Naufraga eterna esp'rança! Deixa-me estar, deixa-me perder!

(Lisboa, 21/12/99)

Sunday, July 08, 2007

Monólogo a duas vozes:[1]

– Quem és?
– Não sei.
– Que queres?
– Esqueci.
– O que é a memória?
– Algo de horrendo.
– A verdade onde está?
– Perdi.
– Vais para que sentido?
– Qualquer.
– Com que intenção?
– Nenhuma.
– Alguém te espera algures?
– Uma mulher.
– Como se chama?
– Bruma.
– Como o lembraste?
– Ela mesma mo disse.
– Quando?
– Agora.
– E que faz ela?
– Ri-se.
– Quem a acompanha?
– A Aurora.
– De onde as conheces?
– De mim.
– Quem elas são?
– Eu.
– O que te ensinam?
– O Fim.
– Que nome lhe dão?
– Deus.
– Onde se encontram?
– Onde há espaço.
– E o Espaço é grande?
– Talvez.
– O que vês nas Estrelas?
– Um laço.
– E para além dele?
– O mesmo que tu vês.
– Tens algum ideal?
– A Fome.
– Tens alguma arma?
– O Verso.
– Se fosses Deus, que ordem dar aos Homens?
– «Come!»
– E que morada, enfim?
– O Universo…
(Lisboa, 09/05/05)
[1] Título de Lénia Marques

Sonata Contra a Tristeza

Sim, bem sei que tudo é triste; esta é daquelas noites em que o manto azul do firmamento perde as suas estrelas; ouvi dizer até que um vento se aproxima, capaz de arrancar as raízes das árvores e o telhado das casas, e o coração dos homens mais sensíveis; ouvi dizer que o Hades subiu à superfície e vem julgar os mortais e arrancar-lhes a pele, e exigir-lhes a expiação das faltas; ouvi dizer que a Solidão, essa Raínha gélida e cruel, fez estalar os chicotes sobre os seus corcéis congelados e rodou sobre os astros, desde os pólos, até ao teu peito cansado onde agora repousa; ouvi dizer que um monstro do Sem-Fim subiu à tua cama, se encostou a ti, e te soprou ao ouvido as maldições dos mortos e as rezas negras das Trevas, condenando-te ao Eterno Desespero; ouvi dizer que o Tirano do Destino te apontou um ceptro de mármore comprido e te fez ameaças:Nada receies. Estarei sempre por perto quando precisares, quando a Sombra vier importunar-te. Anda, não cismes! Sai da beira do abismo! De que te serve olhá-lo como quem olha um poço, cravando os olhos no fundo para ver quando acaba? Há um céu lá em cima! Que fazes tu, então, nesse inclinar para baixo? O fundo só podes vê-lo se lá levares todo o corpo. Julgas tu que é a hora de visitar as ruínas de um Palácio sem fundo, se até o seu Rei o abandonou?! Então? O que é isso que choras? Um fumo que passou. Un détail. Un fait-divers… Tudo evolui. Guarda do antes a memória que restar e arrepia caminho. O amor é uma fatia da vida, um jogo de crianças em que entras, brincas e descansas para todo o sempre. Diverte-te enquanto jogas e ele passa depressa. Vais ver que, quando os dados deixarem de rodar, e as cartas já não baterem sobre o lenho antigo dessa mesa de pinho, e os tabuleiros de damas e xadrez se virarem para baixo e se arrumem as peças, vais pedir (como um menino que peça um caramelo) para jogar outra vez… São assim as coisas… No fundo, penso eu às vezes, é como ouvires ou compores uma canção cujas notas, a princípio, andem fora de tom; e cabe-te a ti afina-las e ser o mestre de orquestra. De que te serve queixares-te de que não percebes de música? É tão difícil, no fundo, quanto apertar os sapatos! No início não sabes como aquilo se faz, é um movimento difícil, é preciso tomar-lhe o jeito, treinar o laço, compreender a elegante ciência de prender aos pés os confortáveis devoradores de caminhos… Depois aprendes a fazê-lo sozinha e, um dia, dás por ti, e atares os sapatos com um gesto elegante de bailarina russa é uma coisa natural do teu corpo, que fazes sem custo enquanto vês televisão, entras numas conversa, cantas uma música… Já nem precisas de te concentrar, fá-lo de olhos fechados… E então, que ideia poética! Nenhum ente superior ou inferior a ti, nenhum misticismo sobrenatural, nenhuma metafísica, nem uma nesga de deus, pode ensombrar os teus passos, e apenas tu te apresentas ao mundo sensível, maestrina das sensações de ti mesma e do mundo imenso em redor, agitando a tua batuta omnipotente, dirigindo cada acontecimento isolado do teu próprio universo… Não é sublime este pensamento?
«Ah, é impossível!», deves estar a queixar-te; mas o que é impossível? Apenas o que a tua vontade não consente. E quem manda na tua vontade? É, pois, este o meu lema para a vida: Quer, e sê feliz…

(Lisboa, 20/12/99)

Saturday, July 07, 2007

«De Pé, Como as Árvores!»

Um dia hei-de morrer, tombar, cair… Então, se hei-de morrer, que seja a rir!

(Lisboa, 15/12/99)

Friday, July 06, 2007

Diário do Polidor de Versos

Nada vale a pena. Nem a escrita vale a pena com que escrevo. Nem pena vale a pena que carrego. Sejas ou não outro, mudes ou não mudes, o mundo há-de girar na sua indiferença. Porque te esforças nessa desavença? A alma é grande, é certo, como são grandes os sonhos. Mas esta dor maior de estar em mim, e de me ver definhar e ter um fim! A minha alma é grande, e grande se passeia pelo paúl dos dias abjectos. Ela projecta em sonhos os seus febris projectos. São todos geniais, sublimes, um poema… e um que valha a pena?

(Lisboa, 14/12/99)

Thursday, July 05, 2007

No Divã de Sigmund Freud – Opiologia:

È verdade, senhor Freud. Estava para lhe falar há há muito tempo, mas penso que nunca tive coragem. O que se passa é isto : tenho sido um menino terrível. O senhor, claro está, vê em mim o corpo do adulto que eu sou, apesar, ainda, deste rosto imberbe. (Com certeza, aqui tem o tabaco, sim, bem sei, falar-lhe dos meus pais…). No entanto, este homem exterior esconde, como um vestido muito espesso e comprido que fica muito abaixo dos pés e muito acima do pescoço, um menino pequeno, traquinas, infantil, ingénuo e amedrontado. Pequeno porque é, no seu íntimo, a mais insignificante das criaturas na Terra; traquinas porque nasceu com este defeito diabólico da hiper-actividade na alma, com esta irritante ebolição ininterrupta do intelecto; infantil, porque cede muito aos caprichos do desejo que é, como se sabe, um capricho, exactamente por se negar o prazer de ser desejo após a consumação - isto é: quer o longe mas desdenha o perto, estando sempre longe o que deseja, a sua louca vontade inconsumada. Estou a fazer-me entender? (Não. Estou bem assim. Não quero por agora encostar-me. O seu divã, se me permite, também parece muito confortável. Talvez um dia possamos conversar sobre os seus pais para variar…). Onde é que eu ia? Ah! Ingénuo… Ingénuo porque se deixa enganar facilmente pela verdade que já há muito conhece. Penso neste caso que tal absurdo sucede porque, conhecendo a razão das coisas, pretendo ser descartiano e socrático e acabo, como São Tomé, por tocar a pele da verdade e continuar, ainda assim, sem querer (por capricho, uma vez mais por capricho) acreditar nela. Porfim, amedrontado, porque a relação indisfarçável que qualquer ser vivo tem com a natureza, a relação mais básica, mais animal, é, por força deste maldito instinto de sobrevivência, de puro terror. O ser que vive vive na eterna expectativa de um qualquer mal exterior lhe surgir do vácuo para lhe cortar a cabeça. Conhece o senhor situação mais ridícula? Se sim, não ma conte. Não tenho qualquer vontade de aniquilar o meu sistema… (Sim, por favor, um pouco de água). Quer então que lhe fale dos meus pais… Da mãe em particular… Bom… Era uma pessoa famosa, por isso faço por não falar muito dela. Vem na Bíblia, inclusive, o livro mais lido do Mundo, sabia? Quem é? Pois não se está mesmo a ver? A Virgem? Que disparate, senhor Freud! Eva? Não, também não, era demasiado púdica para fazer de Eva. O senhor tem ideias brilhantes sobre a sua mãe, mas já vi que não percebe nada das mães dos outros. Não. A minha mãe, senhor Freud, era a serpente. Não podia ser outra aliás. Na verdade é louca. Teve um pesadelo depois de ver a Branca de Neve e não pára de dar maçãs às pessoas. Foi por isso que a Humanidade se perdeu. Quer um culpado? Deixe o Diabo em Paz! Que tem ele com isso? Culpe, pelo interminável sofrimento do Mundo, esse feiticeiro pérfido que foi Walt Disney e os abomináveis Grimm que engendraram o conto do terror popular. Só uma mente sórdida a um grau infinito poderia conceber uma bruxa que é uma feia velha com verrugas, capaz, por simples vaidade e inveja, de matar uma criança através de um gesto de amor: oferecer-lhe um fruto… Foi assim, senhor Freud, que eu vi a Branca de Neve: através daquela oferta singular, representativa do afecto que uma geração mais velha nutre pela outra mais nova, representativa do amor de um avô por um neto, representativa, enfim, da oferta que perpetua o sangue de uma família ou de um grupo particular, Walt Dinsey, e os Grimm antes dele e a tradição germânica de contextos negros, destruiram um símbolo: o símbolo da felicidade possível, da simplicidade das coisas, da placidez perfeita do Universo por meio da honestidade básica das relações humanas. A maçã da bruxa má veio dizer que não era uma maçã mas um coração humano que fôra fechado num frasco e que azedara por ter estado lá dentro, sem respirar o ar da natureza. Nesse dia eu percebi que há uma sombra por detrás de cada coisa, que se chama maldade. E essa coisa é a projecção de um coração que foi deliberadamente (por loucura, por simples loucura) deixado a azedar dentro de um frasco. Foi nesse dia que a minha inocência se perdeu.
Sim, claro, a minha mãe… Se a vi nua? Não sei dizer-lhe… Lembro-me de lhe ter visto o corpo nu por de dentro da pele, isto é, eu vi-lhe aquele interior de ossos e artérias e de nervos a que os espiritualistas gostam de chamar de alma. Talvez seja por ela ter enlouquecido, mas nesse corpo por debaixo das roupas por debaixo da pele, só consegui ver ódio e dôr. Soube assim que a minha mãe era uma serpente em cujo interior vivia outra serpente que a roía com tanta voracidade que a cada ano encolhia mais um pouco. Eu sei assim que ela um dia vai simplesmente desaparecer, como um gaz que se evapore pela atmosfera…
Enfim, era o que lhe dizia… Sou um menino difícil e, como é natural, por consequência disso, os meus pais estão tristes. A rigor, eu não conheço, mas amo muito os meus pais. O amor é algo de espontâneo, instintivo e incontrolável. É uma manifestação empírica do corpo que não pede comprovações para além da manifestação evidente e involuntária de si mesmo. O conhecimento, pelo contrário, pede já que se afira e que se prove e tal objectividade é manifestamente impossível seja para quem fôr. Nem tampouco os objectos podem ser reclamados como entidades sobre as quais se produziu um juízo objecitvo. O senhor também o sabe, senhor Freud, que sem os delírios que oferece o seu cachimbo o mundo não tem outras medições que não a do seu observador. Em delírio, claro está, já o caso muda de figura: um delírio tem regras muito próprias e não precisa de um observador para se manifestar. Porque ele é em simultâneo o olho que vê e a coisa observada, o dentro e o fora, o aqui e o ali, o depois e o antes, o nunca e o já. O delírio é o cruzamento irresponsável (e por isso feliz) de todas as dimensões e é no seu absurdo injustificável que reside a sua lógica perfeita e inabalável. É por causa do seu delírio, senhor Freud, que o senhor é tão incisivo nas suas apreciações. O seu valor não está portanto no que diz mas na sua capacidade de suportar o delírio. Porque o único problema do delírio é a dificuldade que há em suportá-lo. Imagine, por exemplo, que aquele que delira perde definitivamente o contacto com a realidade… Imagine, por hipótese absurda, que não deixava de falar da sua mãe… Não iria o doente pensar que era na realidade o médico quem estava a precisar do fútil e inconsequente tratamento da Psicanálise? (Sim, serei breve e regressarei depressa ao tema dos meus pais. Uma última abstracção antes disso, não obstante):
Que acontecimento trágico marcou a sua infância para que se tornasse dependente de ópio e cocaína e vivesse assombrado pelo complexo de Édipo? E se Édipo é para si tão importante, o anti-herói trágico por excelência, como explica que a sua cegueira seja simplesmente metafísica? (Dou-lhe a liberdade de me responder a isto mais tarde…)
Continuemos então. Expliquei-lhe já que tenho uma mãe e um pai. O fenómeno é, à primeira vista normal, comum a qualquer um dos mortais, não fosse dar-se este caso:
A minha mãe têm existência apenas na sua vida artística, no palco das suas manifestações e não na realidade palpável da minha vida quotidiana. Isto é: ela surge na Bíblia e no filme de terror de Walt Disney, como já lhe contei, e, para além disso, no meu album de fotografias. Lá, aparece com uma expressão teatral de alegria e amor. A expressão é tão perfeitamente teatral que se torna falsa demais, até para o teatro. É deveras impressionante e admirável, senhor Freud, o seu rigor artístico. É por isso que ela é, inegavelmente, uma grande estrela. Aliás, a maior de que me lembro. Conhece outra maior? (Não. Aqui não tenho mais tabaco. Experimente aí desse lado, dentro da escrivaninha. Eu já me levanto para ir buscar mais ao quarto).
O meu pai… É um sujeito com uma altura razoável, acima da média, eu diria… Quase nórdico. Quase, porque nasceu cá e não lá. Se lá tivesse nascido, sê-lo-ia, creio eu, inteiramente. Ele é importante porque paga as contas. Foi assim que eu distingui o seu afecto: o dinheiro é uma manifestação de afecto na nossa sociedade. Creio bem que a única manifestação possível. Gostar muito de alguém reflecte-se então por se lhe oferecer muito dinheiro e o contrário disto também se comprova na proporção inversa: detetestar alguém é levar essa pessoa à miséria. É curioso, todavia, constatar que se eu roubo muito dinheiro a alguém estou a fazer dessa pessoa um miserável, mas se lhe dou muito não consigo, jamais, enriquecê-la o suficiente. Este é o grande paradoxo da matemática do afecto. Esta é, também, mais uma consequência clara do síndroma da Branca de Neve e da Loucura da minha mãe. Demasiadas pessoas comeram a maçã e ficaram com a alma envenenada…
O meu pai tem então assegurada, por via financeira, a sua importância extrema na minha sensibilidade poética de filho pródigo por vontade alheia. Assim sendo, não faz diferença que não surja, por uma única vez, no album de fotografias. Não é que ele não esteja lá, senhor Freud. Por via do seu afecto económico, ele está presente no meu coração e nas minhas recordações e, consequentemente, no meu album fotográfico. Limita-se, porém, a passar discreta, invisivelmente pelo album, como um vampiro passa diante de um espelho.
Como lhe disse, não conheço, mas amo os meus pais. Eles, pelo contrário, conhecem-me mas não me amam. E é nesta combinação de opostos que jaz todo o equilíbrio da nossa relação perfeita. Eu sou o eixo por onde eles se balançam no seu jogo de forças, no seu confronto de verdades escondidas e de amarguras por raspar de um Passado distante e inútil. O meu pai é a Estátua da Dignidade, a Perene Efeméride da Boa Aparência. A minha mãe é o Desejo de Nero personificado, a imagem da Hierarquia Superior com a sua horda de escravos, a inspiração da lira do artista mortal sem a boa sorte do talento. Ele projectou a aparência e deu-lhe uma impressão de verdade. Ela queimou essa cidade exterior para lhe investigar arqueologicamente os destroços. Ambos se dizem amantes da arte. E no entanto, senhor Freud, uniram-se para criar um monstro. Sim. Sou eu. Eu, o adulto de rosto imberbe que é uma criança por detrás do rosto e corre aflito pela estrada dos sonhos a gritar pelo brinquedo de Ser que deixou esquecido num desejo antigo. Eu, que me reinvento na sua Psicanálise. Eu que o reinvento para gostar de mim. (Dê-me um instante, já venho).

(…)

O seu tabaco. Bom, a conclusão é esta:
A minha infância, senhor Freud, é filha da Psicanálise.
A minha adolescência é enteada da Psiquiatria. (Alguns psicólogos também fizeram questão de vir visitar-me. Ou foi o contrário? Agora, confesso, não tenho bem a certeza… Adiante.)
A minha maturidade é orfã.
EU SOU UM ADULTO APARENTADO. Quer isto dizer no meu neologismo semântico, sem progenitores. Está a ver a razão da minha dôr?
Há já alguns dias que venho sonhando com lobos. Eu visto um capuchinho vermelho e passeio no bosque das minhas invenções quando ouço uma voz de fauve que me chama. «Quem é? Quem está aí? Que queres?» Pergunto aterrado. Mas o vento traz-me um uivo colossal. E neste momento eu abro os olhos. Que quer isto dizer? Que quer isto dizer?! Não diga nada, pois já achei eu mesmo a resposta do sonho. O sonho quer apenas mostrar-me que eu ainda consigo abrir os olhos quando, na verdade, o Universo exige que os meus olhos se fechem. Está a ver este alfinete-d’ama? Encontrei-o outro dia entre as páginas finais da tragédia do Édipo. Foi com isto que ele viu a verdade e com isto verei eu a minha. Porque a cegueira, senhor Freud, não está no que não se vê, mas, precisamente, naquilo que os olhos vêm e não podem ou não querem compreender. Todas as vistas são uma nuvem que esconde a essência das visões. A verdadeira face do vento que me uiva durante o terror dos sonhos só pode aparecer-me quando eu não puder mais abrir os olhos e eles se acharem completamente fechados. A noite aproxima-se. Tenho algum medo. Não do que me espera mas do que não estou à espera de esperar: da desilusão de um imprevisto. O que está por detrás do lobo? O sono, o sonho, o bosque, o uivo, o vento, o lobo, a névoa… eu.
Como é isto senhor Freud? É possível que o meu espelho seja a única originalidade da Psicanálise?
Que frustração! Isto é afinal um meio como qualquer outro de matar o tédio! O senhor não é um homem excêntrico e singular, nem tampouco um investigador, um cientista, um médico, um intelectual, mas, tão só, um pobre velho mortalmente aborrecido! Que consternação! E esses subterfúgios da paternidade, são o quê afinal? Um banal tema de conversa? Um quid pro quo das genealogias da espécie? Pura quadrilhice? Não tinha um tema mais interessante para chegar ao tutâno da alma, isto é, a si próprio?! Ora francamente! Que vergonha!
Vejo que se mantém a olhar-me com o seu ar intelectualmente superior, como um médico seguro olha um louco. E é talvez nisso que reside toda a sua sabedoria: nessa segurança arrogante e suprema que só um bom delírio pode conseguir. De facto, senhor Freud, vejo (sem o ver fisicamente, o que é melhor) que tem toda a razão. O delírio é a lógica elementar do Universo e a mais íntima e sólida razão que há no corpo. A paternidade é uma questão trivial sobre a evolução a partir da génese cuja importância reside em abrir portas à regressão à genese permitindo assim que se fale de tudo. Eu sou o Sistema Solar e Lunar e Terrestre e Infinitesimal de mim mesmo multiplicado num sem fim de consciências, que se justifica pela simples circunstância de ser; isto é, filosoficamente falando, de se aperceber de qualquer coisa a partir de si mesmo (que não tem forçosamente de ser a afirmação de que é). E é a manifestação de tudo isto que forma um momento perfeito. Efectivamente, senhor Freud, o senhor é um sábio… Mais ópio?

(Lisboa, 12/12/99)

Wednesday, July 04, 2007

Apócrifo das Memórias de Ricardo Reis

Seremos, Lídia, como dois amantes, de mãos enlaçadas, seguindo, com os olhos, o curso de um rio. Sentemo-nos e sintamos. Contemplemos o seu curso e admiremos a corrente que corre para onde quer:
(...)
«Mas oh! - exclamas - o seu caudal é tão curto, a nossa vida tão breve, e este mundo tão frio!».
Sim, Lídia; por isso nós arrumámos o barco entre aqueles juncos compridos e viemos sentar-nos nesta margem; por isso nos esquecemos de nós e contemplamos. Tudo é passagem se não fixarmos, por instantes, isso que passa pelo fantasma que somos; tudo é uma impressão, uma sombra, um vulto. Sermos um com as coisas é olharmos para elas, tendo-as a elas, unicamente, nos olhos, que não são apenas estas esferas de ver. Viver não está em estar, mas em saber sentir. Em teu redor há toda a vida que te chama... Mas saberás, tu, ouvir?

(Lisboa, 11/12/99)

Tuesday, July 03, 2007

Jacinto Ramos, Antiquário e Curador, Escreve Uma Carta Sobre o Fim de (In)Certo Amor…

«Para de vez colocarmos uma pedra sobre este assunto enfadonho desse amor que houve em nós (se quiseres, a pedra de Drummond), relembro Sérgio Godinho de quem, bem sei, tu não gostas:

Por pretextos talvez fúteis
A alegria é o que nos torna os dias úteis.

Por motivos talvez claros,
O prazer é o que nos torna os dias raros…

Lembro-me de teres perguntado que classificação eu guardara para o nosso passado lírico. Eu, calei-me. Incerteza? Insegurança? Indecisão? Na verdade, julgo, nessa altura, eu não tinha ainda uma resposta. Há momentos em que nenhuma palavra parece ser boa ou útil, e em que tudo o que é dito, por melhor que seja, apenas incomoda e magoa. De que serve, portanto, falar nessas alturas?
Agora, porém, que passou tempo necessário à formação da lógica sobre a poeira desse amor perdido, acabemos, como convém, esta história e classifiquemos, se possível, o lirismo:
Pensemos que, qual Alexandre, numa guerra terrível e sangrenta, conquistámos (para nossos domínios) mais um dia à Morte (inimigo comum). Vencer a morte, I., é ter prazer nos dias. E que fizemos nós?
O nosso tempo foi bom; e distinguiu-se dos outros, precisamente, porque éramos os dois soldados, lutando, nessa guerra de morte que é a vida, por uma causa comum. A nossa luta foi num único sentido e por isso vencemos. Que importa se por um dia, por um ano, ou pela vida inteira? Que sentido?, sinto que perguntas… Esse sentido, I., é o nosso… Não pode ter sido então, esse passado, um tempo perdido ou vão...
Ri-te comigo I., ri-te comigo! Porque o pior numa guerra, seja ela qual fôr, é o arrependimento. Se matáste, se morreste, que importa? Ao seguires em frente, não sabias já que era isso que podia vir a acontecer?
Sabes, quando penso nisto, não sei se somos os dois Humanos, demasiado Humanos, ao jeito de Nietzsche, ou estúpidos, demasiado estúpidos, ao jeito da comum população… Na verdade, não me perguntes porquê, não quero mais falar sobre estas coisas. No fundo é isto: fartei-me. De facto, julgo, o meu feitio execrável vem porfim revelar-se. Todo o nosso amor foi feito de um passo arrojado seguido de um no entanto. A liberdade do desejo e da fome tinha a prisão da cautela e do porém, todavia, não obstante, contudo, mas, tem cuidado, vê lá, ainda assim… E essas adversativas estruturais e semânticas não nos deixaram arrepiar caminho, nem trouxeram à flor da pele o quanto eu gosto de ti.

Não te amo não, que o amor vem da alma
E na alma eu tenho a calma, a calma do jazigo,
Não te amo, não.

Mas ainda assim tens seguido comigo,
No meu coração…


Sim, I., é verdade: apesar de cavaleiro imaginado, também sou homem de versos. Se os deuses não tivessem ditado que o meu destino seria matar homens (pelo desgosto e desdém que lhes fui tendo e me tiveram também), seria antes, de modo algum o duvido, um bardo celta e triste pendurado nos parapeitos altos das donzelas virgens (ou quase)... Porque estas veias têm o fogo dos poetas e o sangue dos imortais! Mas os deuses, de mim, quiseram outra coisa, e por isso mato, com o meu Egoísmo, muito melhor do que escrevo poemas de amor. Julgo, porém, ser um pouco assim com todos os Homens…
Perguntarás, talvez, se me lamento… Não, I., não me lamento. De que serve chorar os cacos depois de quebrada a terrina? De que serve falar mais nesse lirismo, pensar mais nesse passado que passou? Acabou, morreu, como todas as coisas. E como todas elas permanece a memória do mau e do bom…
Que fazer com isso? Que mais senão fazer o que se faz com tudo?
Continuemos, porque há estrada, e não pensemos mais nisso. E, de passagem, apanhemos os cacos. Mas com mãos de bardo, se possível, trauteando, em sorrisos, uns poucos versos de amor; não com estas mãos de cavaleiro negro, brutal, sozinho e miserável…»

(Lisboa, 10/12/99)

Sunday, July 01, 2007

Lençóis de Linho, Moínhos de Vento (O Meu Desalinho e Este Céu Cinzento...)

Que sono! Nada apetece! Esta noite vou fugir de todas as obrigações e deitar-me já. A cama, estendal do Sono, é o que mais se assemelha a um caixão. Nela há paz. Nela o meu sossego. Nela eu acho tudo o que a vida não traz... O Sonho que há no Sono, que bem faz!
(Lisboa, 09/12/99).

Das Horas, Dos Versos, Dos Fantasmas...

Tão tarde! Como perdi o sentido das horas? E o sentido da vida? Onde está esse sentido incorporado no sentido anterior? Uma náusea entorpece-me os sentidos; esses cinco sentidos que não uso, que não me servem de nada...
De facto, que vejo eu com estes olhos cansados, esquecidos aquém das lentes? Um dia escrevi já ter pensado ter dito ser tudo uma ilusão...
E o olfacto? Que cheiro? É subjectivo o prazer deste perfume, como o prazer que tiro do teu corpo... mas estás tão longe amor, estás tão distante! És uma névoa pairando no horizonte roxo, na hora triste em que o mundo se desmorona, o universo se quebra, as estrelas explodem em fulgores ingentes e o sol, esbatido, vem morrer no mar...
É indistinto o ruído dos carros, abafado pelos homens dos andaimes que soltam gritos do seu cume de vertigem, pedindo mais uma viga, exigindo um balde, um pincel, assobiando para as mulheres que passam... A cidade fervilha no seu tumulto urbano, mas no deserto das minhas sensações tudo se apaga, toda o progresso se esfuma no mais por dentro de mim...
E mais por dentro desse interior sombrio, distingo um batimento regular, um toque surdo, soturno, monocórdico... tão além e tão perto! Sexta-Feira deixou Robinson sozinho na sua ilha e veio rufar para dentro do meu peito. Mas que cansado Sexta-Feira deve estar! Porque esse bombo soa mais e s p a ç a d a m e n t e... O seu toque fraqueja... E as horas passam mais pesadas... tic-tac... meu coração, meu futuro... És tão turvo! Tão administrativo! Tão burocrático! Tão aflitivamente sepulcral!
(...)
Bate... bate... bate... Sexta-Feira, coração!, ninguém te ouve!... Sexta-Feira, coração!, ninguém te quer! Estás negro, coração! E o céu que negreja! E o futuro que negreja! E a esperança que escurece nas tuas desilusões! Tudo é tão pálido! Tudo é tão vazio! Tudo perdeu as suas dimensões...
Como é insensível todo o Mundo! Como é frio todo o Universo! Como sabe a nada o contacto material com essa caneta com que escreves a tua inquietação!
E essa mão que então a movimenta e que, sem o notar se reinventa, como pode jurar acontecer? Como dizer que a escrita se apresenta, e que a vida de facto se experimenta, se eu não sinto, nem vivo a mão mexer??!

(Lisboa, 08/12/99)