
È verdade, senhor Freud. Estava para lhe falar há há muito tempo, mas penso que nunca tive coragem. O que se passa é isto : tenho sido um menino terrível. O senhor, claro está, vê em mim o corpo do adulto que eu sou, apesar, ainda, deste rosto imberbe. (Com certeza, aqui tem o tabaco, sim, bem sei, falar-lhe dos meus pais…). No entanto, este homem exterior esconde, como um vestido muito espesso e comprido que fica muito abaixo dos pés e muito acima do pescoço, um menino pequeno, traquinas, infantil, ingénuo e amedrontado. Pequeno porque é, no seu íntimo, a mais insignificante das criaturas na Terra; traquinas porque nasceu com este defeito diabólico da hiper-actividade na alma, com esta irritante ebolição ininterrupta do intelecto; infantil, porque cede muito aos caprichos do desejo que é, como se sabe, um capricho, exactamente por se negar o prazer de ser desejo após a consumaç

ão - isto é: quer o longe mas desdenha o perto, estando sempre longe o que deseja, a sua louca vontade inconsumada.
Estou a fazer-me entender? (Não. Estou bem assim. Não quero por agora encostar-me. O seu divã, se me permite, também parece muito confortável. Talvez um dia possamos conversar sobre os seus pais para variar…). Onde é que eu ia? Ah! Ingénuo… Ingénuo porque se deixa enganar facilmente pela verdade que já há muito conhece. Penso neste caso que tal absurdo sucede porque, conhecendo a razão das coisas, pretendo ser descartiano e socrático e acabo, como São Tomé, por tocar a pele da verdade e continuar, ainda assim, sem querer (por capricho, uma vez mais por capricho) acreditar nela. Porfim, amedrontado, porque a relação indisfarçável que qualquer ser vivo tem com a natureza, a relação mais básica, mais animal, é, por força deste maldito instinto de sobrevivência, de puro terror. O ser que vive vive na eterna expectativa de um qualquer mal exterior lhe surgir do vácuo para lhe cortar a cabeça. Conhece o senhor situação mais ridícula? Se sim, não ma conte. Não tenho qualquer vontade de aniquilar o meu sistema… (Sim, por favor, um pouco de água). Quer então que lhe fale dos meus pais… Da mãe em particular… Bom… Era uma pessoa famosa, por isso faço por não falar muito dela. Vem na Bíblia, inclusive, o livro mais lido do Mundo, sabia? Quem é? Pois não se está mesmo a ver? A Virgem? Que disparate, senhor F

reud! Eva? Não, também não, era demasiado púdica para fazer de Eva. O senhor tem ideias brilhantes sobre a sua mãe, mas já vi que não percebe nada das mães dos outros. Não. A minha mãe, senhor Freud, era a serpente. Não podia ser outra aliás. Na verdade é louca. Teve um pesadelo depois de ver a Branca de Neve e não pára de dar maçãs às pessoas. Foi por isso que a Humanidade se perdeu. Quer um culpado? Deixe o Diabo em Paz! Que tem ele com isso? Culpe, pelo interminável sofrimento do Mundo, esse feiticeiro pérfido que foi Walt Disney e os abomináveis Grimm que engendraram o conto do terror popular. Só uma mente sórdida a um grau infinito poderia conceber uma bruxa que é uma feia velha com verrugas, capaz, por simples vaidade e inveja, de matar uma criança através de um gesto de amor: oferecer-lhe um fruto… Foi assim, senhor Freud, que eu vi a Branca de Neve: através daquela oferta singular, representativa do afecto que uma geração mais velha nutre pela outra mais nova, representativa do amor de um avô por um neto, representativa, enfim, da oferta que perpetua o sangue de uma família ou de um grupo particular, Walt Dinsey, e os Grimm antes dele e a tradição germânica de contextos negros, destruiram um símbolo: o símbolo da felicidade possível, da simplicidade das coisas, da placidez perfeita do Universo por meio da

honestidade básica das relações humanas. A maçã da bruxa má veio dizer que não era uma maçã mas um coração humano que fôra fechado num frasco e que azedara por ter estado lá dentro, sem respirar o ar da natureza. Nesse dia eu percebi que há uma sombra por detrás de cada coisa, que se chama
maldade. E essa coisa é a projecção de um coração que foi deliberadamente (por loucura, por simples loucura) deixado a azedar dentro de um frasco. Foi nesse dia que a minha inocência se perdeu.
Sim, claro, a minha mãe… Se a vi nua? Não sei dizer-lhe… Lembro-me de lhe ter visto o corpo nu por de dentro da pele, isto é, eu vi-lhe aquele interior de ossos e artérias e de nervos a que os espiritualistas gostam de chamar de alma. Talvez seja por ela ter enlouquecido, mas nesse corpo por debaixo das roupas por debaixo da pele, só consegui ver ódio e dôr. Soube assim que a minha mãe era uma serpente em cujo interior vivia outra serpente que a roía com tanta voracidade que a cada ano encolhia mais um pouco. Eu sei assim que ela um dia vai simplesmente desaparecer, como um gaz que se evapore pela atmosfera…
Enfim, era o que lhe dizia… Sou um menino difícil e, como é natural, por consequência disso, os meus pais estão tristes. A rigor, eu não conheço, mas amo muito os meus pais. O amor é algo de espontâneo, instintivo e incontrolável. É uma manifestação empírica do corpo que não pede comprovações para além da manifestação evidente e involuntária de si mesmo. O conhecimento, pelo contrário, pede já que se afira e que se prove e tal objectividade é manifestamente impossível seja para quem fôr. Nem tampouco os objectos podem ser reclamados como entidades sobre as quais se produziu um juízo objecitvo. O senhor também o sabe, senhor Freud, que sem

os delírios que oferece o seu cachimbo o mundo não tem outras medições que não a do seu observador. Em delírio, claro está, já o caso muda de figura: um delírio tem regras muito próprias e não precisa de um observador para se manifestar. Porque ele é em simultâneo o olho que vê e a coisa observada, o dentro e o fora, o aqui e o ali, o depois e o antes, o nunca e o já. O delírio é o cruzamento irresponsável (e por isso feliz) de todas as dimensões e é no seu absurdo injustificável que reside a sua lógica perfeita e inabalável. É por causa do seu delírio, senhor Freud, que o senhor é tão incisivo nas suas apreciações. O seu valor não está portanto no que diz mas na sua capacidade de suportar o delírio. Porque o único problema do delírio é a dificuldade que há em suportá-lo. Imagine, por exemplo, que aquele que delira perde definitivamente o contacto com a realidade… Imagine, por hipótese absurda, que não deixava de falar da sua mãe… Não iria o doente pensar que era na realidade o médico quem estava a precisar do fútil e inconsequente tratamento da Psicanálise? (Sim, serei breve e regressarei depressa ao tema dos meus pais. Uma última abstracção antes

disso, não obstante):
Que acontecimento trágico marcou a sua infância para que se tornasse dependente de ópio e cocaína e vivesse assombrado pelo complexo de Édipo? E se Édipo é para si tão importante, o anti-herói trágico por excelência, como explica que a sua cegueira seja simplesmente metafísica? (Dou-lhe a liberdade de me responder a isto mais tarde…)
Continuemos então. Expliquei-lhe já que tenho uma mãe e um pai. O fenómeno é, à primeira vista normal, comum a qualquer um dos mortais, não fosse dar-se este caso:
A minha mãe têm existência apenas na sua vida artística, no palco das suas manifestações e não na realidade palpável da minha vida quotidiana. Isto é: ela surge na Bíblia e no filme de terror de Walt Disney, como já lhe contei, e, para além disso, no meu album de fotografias. Lá, aparece com uma expressão teatral de alegria e amor. A expressão é tão perfeitamente teatral que se torna falsa demais, até para o teatro. É deveras impressionante e admirável, senhor Freud, o seu rigor artístico. É por isso que ela é, inegavelmente, uma grande estrela. Aliás, a maior de que me lembro. Conhece outra maior? (Não. Aqui não tenho mais tabaco. Experimente aí desse lado, dentro da escrivaninha. Eu já me levanto para ir buscar mais ao quarto).

O meu pai… É um sujeito com uma altura razoável, acima da média, eu diria… Quase nórdico. Quase, porque nasceu cá e não lá. Se lá tivesse nascido, sê-lo-ia, creio eu, inteiramente. Ele é importante porque paga as contas. Foi assim que eu distingui o seu afecto: o dinheiro é uma manifestação de afecto na nossa sociedade. Creio bem que a única manifestação possível. Gostar muito de alguém reflecte-se então por se lhe oferecer muito dinheiro e o contrário disto também se comprova na proporção inversa: detetestar alguém é levar essa pessoa à miséria. É curioso, todavia, constatar que se eu roubo muito dinheiro a alguém estou a fazer dessa pessoa um miserável, mas se lhe dou muito não consigo, jamais, enriquecê-la o suficiente. Este é o grande paradoxo da matemática do afecto. Esta é, também, mais uma consequência clara do síndroma da Branca de Neve e da Loucura da minha mãe. Demasiadas pessoas comeram a maçã e ficaram com a alma envenenada…
O meu pai tem então assegurada, por via financeira, a sua importância extrema na minha sensibilidade poética de filho pródigo por vontade alheia. Assim sendo, não faz diferença que não surja, por uma única vez, no album de fotografias. Não é que ele não esteja lá, senhor Freud. Por via do seu afecto económico, ele está presente no meu coração e nas minhas recordações e, consequentemente, no meu album fotográfico. Limita-se, porém, a passar discreta, invisivelmente pelo album, como um vampiro passa diante de um espelho.
Como lhe disse, não conheço, mas amo os meus pais. Eles, pelo contrário, conhecem-me mas não me amam. E é nesta combinação de opostos que jaz todo o equilíbrio da nossa relação perfeita. Eu sou o eixo por onde eles se balançam no seu jogo de forças, no seu confronto de verdades escondidas e de amarguras por raspar de um Passado distante e inútil. O meu pai é a Estátua da Dignidade, a Perene Efeméride da Boa Aparência. A minha mãe é o Desejo de Nero personificado, a imagem da Hierarquia Superior com a sua horda de escravos, a inspiração da lira do artista
mortal sem a boa sorte do talento. Ele projectou a aparência e deu-lhe uma impressão de

verdade. Ela queimou essa cidade exterior para lhe investigar arqueologicamente os destroços. Ambos se dizem amantes da arte. E no entanto, senhor Freud, uniram-se para criar um monstro. Sim. Sou eu. Eu, o adulto de rosto imberbe que é uma criança por detrás do rosto e corre aflito pela estrada dos sonhos a gritar pelo brinquedo de Ser que deixou esquecido num desejo antigo. Eu, que me reinvento na sua Psicanálise. Eu que o reinvento para gostar de mim. (Dê-me um instante, já venho).
(…)

O seu tabaco. Bom, a conclusão é esta:
A minha infância, senhor Freud, é filha da Psicanálise.
A minha adolescência é enteada da Psiquiatria. (Alguns psicólogos também fizeram questão de vir visitar-me. Ou foi o contrário? Agora, confesso, não tenho bem a certeza… Adiante.)
A minha maturidade é orfã.
EU SOU UM ADULTO APARENTADO. Quer isto dizer no meu neologismo semântico, sem progenitores. Está a ver a razão da minha dôr?
Há já alguns dias que venho sonhando com lobos. Eu visto um capuchinho vermelho e passe

io no bosque das minhas invenções quando ouço uma voz de
fauve que me chama. «Quem é? Quem está aí? Que queres?» Pergunto aterrado. Mas o vento traz-me um uivo colossal. E neste momento eu abro os olhos. Que quer isto dizer? Que quer isto dizer?! Não diga nada, pois já achei eu mesmo a resposta do sonho. O sonho quer apenas mostrar-me que eu ainda consigo abrir os olhos quando, na verdade, o Universo exige que os meus olhos se fechem. Está a ver este alfinete-d’ama? Encontrei-o outro dia entre as páginas finais da tragédia do Édipo. Foi com isto que ele viu a verdade e com isto verei eu a minha. Porque a cegueira, senhor Freud, não está no que não se vê, mas, precisamente, naquilo que os olhos vêm e não podem ou não querem compreender. Todas as vistas são uma nuvem que esconde a essência das visões. A verdadeira face do vento que me uiva durante o terror dos sonhos só pode aparecer-me quando eu não puder mais abrir os olhos e eles se acharem completamente fechados. A noite aproxima-se. Tenho algum medo. Não do que me espera mas do que não estou à espera de esperar: da desilusão de um imprevisto. O que está por detrás do lobo? O sono, o sonho, o bosque, o uivo, o vento, o lobo, a névoa… eu.
Como é isto senhor Freud? É possível que o meu espelho seja a única originalidade da Psicanálise?
Que frustração! Isto é afinal um meio como qualquer outro de matar o tédio! O senhor não é um homem excêntrico e singular, nem tampouco um investigador, um cientista, um médico, um intelectual, mas, tão só, um pobre velho mortalmente aborrecido! Que consternação! E esses subterfúgios da paternidade, são o quê afinal? Um banal tema de conversa? Um
quid pro quo das genealogias da espécie? Pura quadrilhice? Não tinha um tema mais interessante para chegar ao tutâno da alma, isto é, a si próprio?! Ora francamente! Que vergonha!
Vejo que se mantém a olhar-me com o seu ar intelectualmente superior, como um médico seguro olha um louco. E é talvez nisso que reside toda a sua sabedoria: nessa segurança arrogante e suprema que só um bom delírio pode conseguir. De facto, senhor Freud, vejo (sem o ver fisicamente, o que é melhor) que tem toda a razão. O delírio é a lógica elementar do Universo e a mais íntima e sólida razão que há no corpo. A paternidade é uma questão trivial sobre a evolução a partir da génese cuja importância reside em abrir portas à regressão à genese permiti

ndo assim que se fale de tudo. Eu sou o Sistema Solar e Lunar e Terrestre e Infinitesimal de mim mesmo multiplicado num sem fim de consciências, que se justifica pela simples circunstância de ser; isto é, filosoficamente falando, de se aperceber de qualquer coisa a partir de si mesmo (que não tem forçosamente de ser a afirmação de que é). E é a manifestação de tudo isto que forma um momento perfeito. Efectivamente, senhor Freud, o senhor é um sábio… Mais ópio?