Reinvenção do Desgosto de Miguel Casanova, Antigo e Irreverente Conquistador de Desgraças...

«O amor…», dizem-me uns, com tons de paternalismo… E eu rio-me nas suas caras regradas das suas ilusões de adolescente… O amor?!
O amor não é mais (do) que uma extensão do desejo, uma pincelada inútil de um verniz que estala sobre a madeira do móvel com que enfeitamos a vida. O ódio é a cinza desse móvel ardido, é o seu rosto de poeira e de sal no fim dos gritos, das lágrimas, dos gestos dissolutores. Não há bom nem mau. Há duas faces apenas da mesma moeda ferrugenta que guardamos no bolso das calças por simples superstição. Não, não há bom nem mau. O que fica na sala vazia onde estiveram os móveis é tão só a placidez nostálgica de um bem que passou, um ressentimento que se esfuma lentamente do que foi perdido, uma vontade incerta de arranhar as paredes, um abandono que passa e se habitua a si mesmo, as notas soltas de uma canção triste que se ouvia na rádio. O tempo cura tudo porque a memória, felizmente, é finita como o nosso corpo. O tempo cura tudo porque mais cedo ou mais tarde nos leva à senilidade, ou à loucura, ou à decomposição final irreversível. O tempo cura tudo porque a natureza é perfeita nas suas imperfeições, por permitir a todas as espécies a graça imensa de um fim.
Sim… o amor… uma faca à garganta… um beijo calmo que me queima o rosto, que me incendeia o peito de rancor, um beijo de fogo que me recorda o abandono interminável que sofri: ontem, hoje, talvez amanhã… ontem, hoje, talvez…
Veste-te Miguel. Sai desse torpôr. Que fazes tu nu diante desse espelho?
(Lisboa, 11/05/02)
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