Alexandria - Se Tu Queres Sarar a Solidão...

Do Elogio da Morte ao Requiem do Abandono, Alexandria é a Biblioteca das Ruínas de cada Eu fragmentado, da insustentável esquizofrenia do Mundo...

My Photo
Name:
Location: Lisboa, Gumolândia, Portugal

Imagine Alexander, before conquering half the world: A man full of dreams and handful of sand. Well, that's me...

Sunday, June 10, 2007

Diário do Caçador de Sonhos:

Escrevo directamente no papel com uma caneta nova. Anoto as sensações tal como as recebo, sem reparos, correcções ou ajustes de razão e de estilo. Escrevo por escrever, sem um motivo. Isto equivale a dizer que o faço porque tal é, para mim, absolutamente necessário. Penso um pouco nas coisas. O que é estar aqui? Um bocejo… Expectativa apenas, um denso nevoeiro que esconde dos sentidos o que a vida nos dá.
Tão tarde! Duas da manhã… E pensar que tenho preguiça de dormir! Que absurdo!
Gostaria de deixar neste texto a marca do meu génio imaginado, do meu génio presumido de ser grande, maior do que a minha altura (como dizia o Caeiro), uma mensagem profunda e simples que enchesse o coração dos homens. Mas nenhuma mensagem de nenhum génio poderá preencher tamanho vazio…
Imagino-me um artista, e penso, no contexto dessa imaginação, como gostaria de ser original. Mas a originalidade é cada vez mais inviável como tema - pois já tudo foi dito. O original limitou-se ao como e não ao objecto exacto de que se fala. Eu sou portanto a repetição de um protótipo de homem que de tanto se manifestar é degradação e tédio, e a minha unicidade consiste apenas na minha teimosia em declarar-me único. A prova de isto ser mentira está no meu inevitável enquadramento no sistema. A prova de isto ser verdade está na minha inegável e tortuosa inadaptação. Qual das duas provas me está a mentir?
Cheguei há pouco ao quarto… Lembro agora que saí para ver a paisagem urbana. Caramba, que frio! Como odeio o Inverno! Ter de passar os dias com a paisagem a brincar maldosamente ao Negro Espelho do Homem! Quase dez anos volvidos, releio o texto, revejo a paisagem e vejo Lisboa a nevar como já não se via há 49 anos! Há 49 anos! Ena! Nunca tinha visto Lisboa a nevar… Quase dez anos depois reentro no quarto (mas esse quarto não é já o mesmo e também eu sou diferente) e lembro o quarto de há dez anos atrás, em que a lâmpada se fundiu quando premi o interruptor e me deixou às escuras: «Foi Deus que me deixou às escuras», pensei para comigo, «foi Deus». Um culpado tem forçosamente de existir se não puder ser eu… Um culpado, um culpado… Porque nos consola tanto a transmissão da culpa para um outro, a justificação das nossas frustrações?
Viver é simplesmente limpar o pó à tristeza, puxar o lustro à amargura, sacudir os trapos do sono, alinhar o vinco das estrelas em que pomos a sorte que dizemos faltar, dar graxa aos sapatos da resignação, sacudir as solas do conformismo à entrada da casa de luto que escolhemos ter. E pensar que de uma janela aberta poderia entrar luz! Mas como vencer o obstáculo das longas persianas?
Tantas contrariedades às nossas determinações! E há quem diga ser possível ser feliz!
Improbabilidades, coisas impossíveis… e ei-las sempre por aí a acontecer! A normalidade é então a anomalia repetida dos nossos imprevistos. O anormal é a excepção da estabilidade. Mas como poder estar estável se o Universo é um corpo em movimento?
Tanta raiva! Bonito serviço! Mais uma lâmpada fundida! No meu quarto de há dez anos parti um objecto que me era caro. No meu quarto de hoje parti o coração de quem me achava bom. E se eu te contasse que todo eu sou Inferno? Estou perdido como Dante, sem um Virigílio na vida que me guie. A verdade é essa. Olho em redor, contemplando, friamente, indiferentemente, as marcas de toda a destruição: uma tábua com pregos, uma tábua com pregos, uma tábua com pregos, tirar os pregos e gostar da tábua, assim, como ela está, esburacada e inútil, feia, arruinada. Comprazer-me com a ideia cruel de que essa tábua é o meu peito ou melhor, melhor, a ideia de que ela é o peito de um outro. Amar ser cruel como quem ama o amor, como quem ama uma mulher ou um homem. Imaginar atrocidades incríveis com um sorriso nos lábios.
O meu quarto de hoje: estou acompanhado como se estivesse só.
O meu quarto de há dez anos atrás, em que não era senão um sonho de um homem: Cacos de algo de que antes gostei e que agora não tem mais modo de me cativar. Olhei então em redor: estava só como quem estava acompanhado. Espelhei a minha fúria no vidro e vi-me monstruoso no reflexo da janela entreaberta. Escondi o rosto para não me olhar: acobardei-me com medo do monstro. Fechei-me em copas dentro do meu mundo e joguei espadas (para o defender) no mundo dos outros. Estou num jogo de cartas, somos quatro (como convém nos grandes jogos de cartas). Sentados na mesa quadrada ao centro do quarto pequeno, da esquerda para a direita: Eu, o Meu Deus, o Meu Demónio, Eu. Da direita para a esquerda: Eu, o Meu Demónio, o Meu Deus, Eu. Invariavelmente: Eu, Eu, Eu, Eu. Copas, copas, corações destroçados; ouros, ouros, subornos à Ventura; espadas, espadas, os outros chacinados; paus, paus, a raiva que perdura… E eu sempre perdendo na aventura, e eu sempre perdendo na aventura…
Essa derrota que vislumbro de longe (na distância inefável de dez longos anos) vê-se nas coisas mais simples.
Desejei ser sublime. Lembrei o mito de Deus: o mito que evapora como o vinho, o mito que sou eu…
No meu quarto de outrora: a lâmpada fundida, a solidão profunda, a vida triste… Gritei então original e divino: «Faça-se luz!» - e a luz fez-se. Depois sentei-me, dividi-me em dois, e a minha alma partiu-se…
No meu quarto de hoje abro a gaveta da mesa de cabeceira e tiro uma capa velha de cartão, dobrada, encardida, coberta de pó. Solto os elásticos que a mantinham fechada e tiro dela as folhas que continha. Nelas estão guardadas com cuidado extremo essas colagens da alma que era minha. Mas juntá-la de novo era um esforço que não quero ter. Ela partiu-se, pronto!, não vale a pena falar mais no caso. Guardei por recordação e nostalgia essa relíquia dos restos que a compunham como um excêntrico zeloso dos seus antepassados guarda num frasco, embalsamados, os restos dos seus tetra-tetra-avós. É no fundo uma coisa de museu. No máximo é de contratar um historiador ou antropólogo que queira sacudir-lhe a poeira e traçar-lhe o retrato. Até lá está muito bem onde a deixei, colada, fechada e poeirenta. De que me serve uma alma se afinal, com ou sem ela, a vida é vazia e triste e lazarenta?
Oh, sim, no meu quarto de hoje, no meu quarto de outrora, o mesmo quarto, outro quarto, eu o mesmo de a criança de ontem, ou o homem de hoje que ainda parece um menino mas está velho e triste e se fez vil, que importa?! Tudo não resulta em mais do que impressões num texto com caneta nova anotando memórias muito antigas, coisas vagas que se confundem no tempo, anotando impressões por simplesmente anotá-las ou por simples necessidade ridícula de compensar o meu enorme absurdo de existir, que não tem razões que o justifiquem nem precisa delas! Que me importa tudo isto afinal?
Porque a razão sucumbe ao medo que a devora, como sempre o Bem sucumbe ao Mal…

(Lisboa, 24/03/98)

0 Comments:

Post a Comment

<< Home