Alexandria - Se Tu Queres Sarar a Solidão...

Do Elogio da Morte ao Requiem do Abandono, Alexandria é a Biblioteca das Ruínas de cada Eu fragmentado, da insustentável esquizofrenia do Mundo...

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Imagine Alexander, before conquering half the world: A man full of dreams and handful of sand. Well, that's me...

Friday, April 20, 2007

Diário do Coveiro Pasmado

A vida deu-me uma pá com que venho cavando um fosso. A cada dia o alargo mais uns metros. Quanto mais profundo, mais nítida se torna esta visão de profeta que me visita os sonhos, uma visão terrível que me eriça a pele. Eu estou deitado, com a pá entre os braços, junto à cova que cavo, e o silêncio reina pela noite escura. Não se ouve um insecto. De súbito, do Nada, sobe um estrondo e vejo, horrendo!, o chão a separar-se para dar corpo a um portão enferrujado. Vejo-o abrir-se ante os meus olhos de sono, e assisto incrédulo à aparição de uma alma, tão mísera quanto um recluso em antros de podridão. Ela é magra, esguia, como um esqueleto de fumo, e tem ódio e fogo no olhar. Num sopro de mil trovões, anuncia-me os Reinos do Inferno: esse Inferno a que chamei Ilusão com receio de que se tornasse real…
Todas as noites eu tenho este sonho. Todos os dias acordo trémulo e suado, segurando nas minhas mãos deformadas, calejadas de tanto cavar, a pá cheia de terra e um longo pano preto, pesado símbolo do luto do lugar. Foi o meu desespero que o arrancou da miragem e o trouxe à luz além do absurdo.
Um dia outra visão há-de mostrar-me que as portas que se abrem diante dos meus olhos de coveiro pasmado, são uma projecção de mim mesmo, a entrada para as minhas perversões. E dela acabarão por libertar-se os demónios penados que me assombram. Mas nessa altura, já não terei medo. Depois do terror das minhas noites, pela antecipação da pena que me espera, apenas me restará o inconsolável desgosto de me saber coveiro do meu próprio fosso de decomposição, de ser eu mesmo o Inferno que me atormenta e me promete uma eternidade de misérias… (Lisboa, 19/05/96)

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