Diário do Coveiro Pasmado

Todas as noites eu tenho este sonho. Todos os dias acordo trémulo e suado, segurando nas minhas mãos deformadas, calejadas de tanto cavar, a pá cheia de terra e um longo pano preto, pesado símbolo do luto do lugar. Foi o meu desespero que o arrancou da miragem e o trouxe à luz além do absurdo.
Um dia outra visão há-de mostrar-me que as portas que se abrem diante dos meus olhos de coveiro pasmado, são uma projecção de mim mesmo, a entrada para as minhas perversões. E dela acabarão por libertar-se os demónios penados que me assombram. Mas nessa altura, já não terei medo. Depois do terror das minhas noites, pela antecipação da pena que me espera, apenas me restará o inconsolável desgosto de me saber coveiro do meu próprio fosso de decomposição, de ser eu mesmo o Inferno que me atormenta e me promete uma eternidade de misérias… (Lisboa, 19/05/96)
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