Breve História da Morte de Narciso

«É o Demo!, é o Demo!» gritam umas almas mais espantadas… É então o Demo o Senhor dos Vivos… Belo Deus Supremo que só consola os mortos! Convenhamos que é um Deus inteligente: é mais fácil consolar um cadáver…
Sim… Os Homens buscam o rosto de Deus… e eu que finalmente o achei! Ainda lembro exactamente como foi… certa manhã de sol fogoso, em frente ao espelho…
Foi o meu maior pesadelo… Era tão feio! Tão real! Tão acessível! Estava tão perto… Conheci então o horror da responsabilidade…
Porque é tanto o esforço de albergar a divindade em nós!
Foi por isso que Narciso se afundou nas águas: ele não se apaixonou por si mesmo como dizem. Narciso nem era muito belo… Mas certo dia foi ao lago matar a sua sede, pesando no seu coração a dúvida de todos os Homens, e viu o que buscava no lago em que bebia. Pareceu-lhe primeiro um outro, mas percebeu, porfim, que o rosto que contemplava era o seu. Como podia, ò perfídia!, ser possível ser ele mesmo toda a divindade? Como suportar agora a obrigação sublime de sempre agir bem, de ser Perfeito, de ser Justo, de ser Bom? Onde cabia nesta descoberta a segurança, o alívio, o repouso do erro?
E foi então que, embrenhado no desespero desta verdade inflexível, e incapaz de se submeter à alienação das crenças, Narciso contemplou uma vez mais o seu rosto, e, com uma expressão de assombro e ódio inconsumível, mergulhou furioso no cemitério das águas… (Lisboa, 28/05/96)
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